Gulodice

Quando via um bolo avançava com raiva e acabava com ele logo ali. Era um ímpeto que muitas vezes começava no nariz e não na barriga. Era o doce que chegava em respiração que fazia com que os olhos esbugalhassem em busca de fatias, bocados e pecados. Assim que localizava aqueles sabores, já eles estavam no estômago, tal era a rapidez com que a boca se abria. Mas não era prazer não, era raiva. Raiva do bolo, da tarte, da cozinheira, da minha mãe, da minha avó e da Madalena, que de doce só tinha o nome. Uma faz, a outra deixa comer e ela reprime, dizia “que para cara de bolacha bastava ela”.

Passei a comer às escondidas na despensa, no quarto, no portão amarelo de trás, comia e saltava ao mínimo barulho. Sim, porque a Madalena aparecia à velocidade que os bolos desapareciam.

O bolo saltou-me e ficou pousado na mesa, atento. 

Era o meu amigo de secretária, o meu irmão mais novo, que eu adorava e odiava porque estava sempre pronto a denunciar-me. O bolo e os botões e os fechos dos tecidos com que se embrulham pessoas. Por isso, quem ficou atento foi o bolo, mais do que eu.

Ontem o bolo era redondo, suave, macio, doce, saboroso, cheirava a acabado de fazer e, lá estava ele desejoso que chegasse a Madalena para ir fazer queixinhas, na esperança de durar mais uma hora, talvez duas, mas não mais. A noite era minha madrinha.

Chegou a Madalena, com os seus olhos avelã, cara de Maria e sorriso de recheio. Trocaram olhares e eu afastei-me com os meus botões.

Lá ao fundo o bolo sorria, a limpar o creme que lhe escorria ao de leve entre o açúcar.