eu sou a viscondessa

"- Ammu, quando se está feliz num sonho, isso conta?"

                                                  Arundhati Roy

Luz

A Luz era envergonhada e quieta, costumava sonhar com o escuro por mais umas horas. Saía de casa meia apagada e andava pelas travessas evitando as ruas largas de tijolos altos. Vagueava escondida entre raios de sol que se vestiam para brilhar o dia inteiro. À noite, olhava para a lua e sonhava com a magia que a transportava até ao céu escuro de uma lua nova. A Luz era feliz quando quase ninguém dava por ela, para isso vestia-se de cores neutras, evitando as fluorescências dos campos, a prata dos mares.

Trazia calma a quem tem medo do escuro e a quem precisa de descansar das claridades frenéticas da vida. Gostava do seu lugar e de chegar sem se anunciar, aparecia quase sem que os outros dessem conta e vivia com a missão de fazer a lua e o sol descansar, olhava os restantes seres com curiosidade do movimento que causava, como se fosse o toque da escola que os afugentava ora para dentro de caixotes ora para fora deles.

Aprendeu que crescer era morrer e por isso preservava a caixinha de música que a sua avó lhe deu, música essa que durava, tantas vezes, tanto quanto ela, e nessa melodia sabia que a sua existência suave era boa companhia para os melancólicos e para os românticos, via ao longe poemas a aparecerem nas paredes e beijos a desvendarem-se em portas obliquas. Nos dias de beijos e poemas deixava-se ficar um pouco mais na mesa do café da esquina, com o poeta sem nome, não lhe falava, apenas o observava e fazia-lhe companhia nas letras que alguém um dia iria ler, alguém que não ela, talvez o rapaz do beijo lesse aquelas palavras naquela porta, noutro dia, e por isso a Luz continuava a aparecer e a escutar do outro lado do passeio as conversas de despedida.

A Luz sabia o que era o amor, sabia o que era a sombra do tempo e sabia-se amada por quem lhe bastava, afinal não era mulher de multidões, ela ajudava a arrumar a cidade, e dava paz às flores de abril a setembro, beijava-lhes as pétalas duas vezes por dia, e aqui e ali, no bom tempo, beijava também os braços de quem amava e dava-lhe beijinhos à esquimó quando o frio aparecia e tapava peles.

Ouvia-se dizer por aí que a Luz era triste, mas não era, só não gostava de extremos e por isso deixava-se ficar sossegada grande parte do dia e vivia como as flores, uma vida feita de breves momentos, momentos de breve vida. A Luz é a mulher que dá vida às flores, aos sonhadores com insónias, aos inconformados do fim, seja do dia, seja da noite.

Eu sou amiga da Luz, bebemos muitas vezes um café de fim de dia e falamos da vida, falamos baixinho para não incomodar quem se senta por perto, sei que me entende, não pelo o que diz, mas porque no seu tempo limitado me ouve. Obrigada, minha Luz!

Árvores

Andavam loucas, abriam as bocas e levantavam os braços, bebiam álcool puro seiva, arrastavam os pés no chão, como quem arranca raízes, juntavam-se umas às outras à luz do dia, eram dadas como interditas a jardins com bancos de madeira porque os abraçavam com vigor e engravidavam deles.

Não gostavam de pés pequeninos que lhes pisavam o musgo e trincavam dedos, como se elas não sentissem dor. Também não gostavam de pés grandes que ora as regavam, ora as machadavam e queimavam como bruxas de magia negra. Em vez de sombra traziam escuro, do que faz nascer fantasmas ao vento, que com elas uivavam a quem se aproximasse. Aprenderam a arte da guerra usando braços como lanças em dias de temporal e folhas como portões trabalhados para dias de calmaria. Eram caras com expressão de quem já tinha secado a voz de tanto terem falado a ouvidos moucos de pássaros que estavam sempre a trai-las em voos fora de horas, recusavam flores e outonos, umas amarrando folhas em castigo vitalício, outras tendo despejado cada uma das verdes inquilinas para a rua da amargura de pés molhados e poças de cinza pneu. Eram olhadas de lado pelas misses enfeitadas de Carnaval que vivam para que os pés próximos se pendurassem e, em contrapeso, as despissem sem pudor.

Inspiravam histórias de loucos que fugiam entre troncos e se escondiam em buracos para pregar sustos a esquilos malfadados que se atreviam a ferrar unhas na cortiça milenar. Sabiam mais dos pés que as tentavam rodear que eles delas, tinham visto os avós dos avós a namorar escondidos, tios dos tios em duelos hereditários de famílias vizinhas que se digladiavam por mais um pedaço de terra, e elas, metade num reino debaixo do chão e a metade de cima no reino vizinho, sabiam de segredos que fariam parar guerras ou iniciar batalhas campais, mas por mais que crescessem altas e verdes e vistosas nunca as suas falas chegaram a quem as quisesse ouvir.

Cansadas, amputaram ouvidos e viraram as costas ao sol, vedaram a chuva de penetrar a festa que faziam de risos maléficos cheios de dor e silêncio e, na loucura, davam-se ao suicídio da morte lenta e imperceptível para os iguais, que as achavam arrogantes e marginais. E nessa linha ténue do que eram, não seriam mais que árvores vividas de poucos abraços e sonhos amputados de clareiras felizes que não viam.

E assim, sem ninguém saber, morriam.

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