Tu pelo Jardim

Ri-me. Olhava para ela e pensava como é que a conseguiria subir, perguntava como é que ela tinha passado ali o Inverno inteiro despercebida. Continuo a olhar debaixo para cima e a perguntar se sempre ali esteve, se continua a ser escadote para guardadores de bichos-da-seda.

Acho fascinante nunca se perceber muito bem o que está a acontecer, como se o momento só valesse no futuro, o instante é difícil de medir, é raro saber com exatidão o momento da reviravolta. Foi agora, neste preciso momento, foi às 11h37, e os segundos? O tempo da palavra a sair da boca? E o tempo do som no espaço? E as conexões cerebrais? Juro que foi agora mesmo! E tu não acreditas em mim!

Ri-me, e não da resposta, que não tive, mas de ser sempre assim, e ri-me de novo, a loucura é minha, sempre, palavra mentirosa, devia haver a categoria das palavras mentirosas. Era cá uma reviravolta! As pessoas foram ensinadas que mentir é feio e, de repente há palavras que mentem por nós, quando queremos dizer a verdade e os ouvidos dos outros sabem.

Não sabia bem para onde ir, sabia que não queria voltar. Dizem mentirosamente por aí que isso já é muito bom. Percebo a ligeireza da afirmação, há frases que tornam conselhos, alentos, como mentiras repetidas muitas vezes, verdades, a irresponsabilidade, devia haver uma classe de frases mentirosas. Se não há roteiro, não há a garantia que não se acaba naquele ponto onde se sabia que não se queria, a reviravolta da reviravolta, e são essas as que merecem o nome de verdade. Caminhos com raízes horizontais, riscos de Parkinson, a vencer os Homens, rasteiras no caminho, paus mais pequenos que folhas, pintas côr de laranja, verdes misturados que dançam descompassados, folhas concorrentes com nuvens, ninhos enforcados, folhas em todo o lado, as do chão não dançam, o chão como espelho do que está em cima das cabeças.

Foi aqui que percebi o meu daltonismo, trazíamos sempre sandes de queijo e alface, folhas, pão, uma de papel e uma de brilho. Contigo havia sempre um pão para cada coisa. Sempre. Ri-me. Torradas, sandes caseiras, sandes de jardim, pão grande, bolinhas e pão de forma. Era assim que falávamos de nós, coisas que dizem palavras. Nunca questionei se a côr era igual, era pão, era lá coisa de se questionar?! As torradas não o são por serem amarelas, morenas, brancas, as árvores são tronco, ramos, são folhas, não por serem verdes, amarelas, rosadas. Sentávamo-nos sempre aqui, que os bancos são para os turistas e nós éramos da casa, como as sandes que comíamos. O chão era fofo apesar da relva rala e a roupa suja mesmo que a estrear. Gabei-te a camisa verde. Não era. Ri-me. Não eras árvore, nem mentira, nem eras sempre.

Disse-me que era um embondeiro por causa dos braços abertos e das crianças do bairro. Embondeiro sempre me pareceu algo pouco cuidadoso. Era mentira. Pedi-lhe que não escrevesse por cima da minha letra, deixa de ser minha e continua a não ser sua. Olhei para a folha, não lhe reconheci nenhuma tinta azul, se calhar era verde, como a tua camisa. Ri-me.