Chove que não molha

Baptizada com o nome de toda a gente, Maria era difícil de descrever, nem alta nem baixa, nem gorda nem magra, de olhos e cabelos castanhos como a maioria da população portuguesa. Quanto a dinheiros era remediada, que é melhor que ser pobre. Em amores era acomodada, não fosse o que vinha para aí ser pior do que o que tinha e, afinal, ele era tão boa pessoa!
Trabalhava na recepção do centro de saúde da terra, trabalho que não era difícil, nem penoso e, apesar de não dar para grandes sonhos, dava para o pão e para uns trapos novos.

Maria deixou de se queixar para fora, tantas foram as vezes que de fora lhe disseram que devia era de agradecer e saber aproveitar o que tinha. Decidiu que não valia a pena colocar no mundo, algo que o mundo não compreendia.

Para dentro é que ainda não tinha conseguido, e bem que tentava.
Vinha-lhe o desejo de um candeeiro de pé alto e logo se apressava a lembrar-se de todos os interruptores que tinha em casa, um para a cozinha, um para a despensa, dois para a sala, dois para cada casa de banho, dois para o seu quarto, três no quarto na filha e mais três no quarto de hóspedes, sem falar dos dois corredores e das escadas. Nenhum era um candeeiro de pé alto ao pé de uma poltrona com uma estante de livros como pano de fundo, mas para quê queixar-se com tanta luz em casa?!
Pensava que gostava de voltar a sentir aquele aperto na barriga, aquele sorriso pregado às bochechas, aquele sentir que era especial, aquele enamoramento que faz das pessoas comuns seres mais importantes que a Rainha de Inglaterra e mais sensuais que a Natalie Portman. E, logo a seguir, relembrava-se que ela bem que podia abrir uma boa garrafa de vinho, pôr umas velas na mesa e se isso não lhe apetecia, porque queria era atenção, então também não podia exigir romances de almofada.

E era assim, neste jogo do quero isto, mas tenho aquilo, que os dias iam andando e os anos passando. Tinha tudo para ser feliz, e tinha dias que até era. Mas quem é que é feliz todos os dias?

Até chegar aqui teve muitas vezes vontade de dar um passo, dizer que a vida assim não lhe chegava, que morno gostava do clima e da comida, que queria sentir que valia a pena. E disse! Disse em voz alta, em sussurro, disse à pessoa certa, à pessoa errada e foi isso, só disse! Viu-se numa noite de lua nova, rodeada de aldeões em marcha sincronizada, com tochas apontadas para uma estrada que todos diziam ser pavimentada do alcatrão mais duradouro e ela que só via terra batida, pronto lá achou que se calhar a miopia que lhe prendia as orelhas às hastes dos óculos não a deixavam ver em condições e seguiu.

Hoje a sua obra de arte saíra de casa para explorar o mundo dos adultos. Maria estava orgulhosa, relembrou a pequena que o colo estaria sempre ali e para não se esquecer que a amava acima de todas as pessoas.

54 anos, continuava nem alta nem baixa, nem gorda nem magra, de olhos e cabelos castanhos, a trabalhar no centro de saúde da terra, e com Manuel sentado no sofá. No Sofá!!!! O que tinham era um sofá, interruptores nas paredes e livros espalhados pela casa e escritos dela inacabados. E, a olhar para o Manuel, que é tão boa pessoa, decidiu comprar uma poltrona de remendos, um candeeiro de pé alto, forrar uma parede de livros e pôr à disposição de quem quisesse a mobília do quarto das visitas. Foi um pé de vento, um vendaval, o início de um tornado que levantava poeira, pedras e folhas e que crescia e arrancava telhas e tijolos, que trazia pingos e chuva. E Maria só pensava “Que chova!” E choveu que era uma ingrata, que era injusta, que aquele quarto estava tão bem assim, que agora ia ter mais tempo, para que é que era aquilo, que nunca estava satisfeita! Maria sorriu, viu um céu sem lua, viu as tochas, a marcha e decidiu que esta chuva que apaga fogo, agora a ela, já não a molha!