O Manuel, da Aldeia Baixa, primo da Maria, via demais desde pequeno, via para lá dos objectos. Usava óculos para poder ver o que todos os outros viam. Eram óculos desgraduados.
De tanto tentar não ver, caiu, escorregando numa casca de banana. Eu estava na sala ao lado e só ouvi BANG, um grande estrondo.
Fui a correr ver do Manuel e dei com ele estendido no chão da cozinha, com um sapato perdido e um braço torto debaixo das costas. Olhou-me de esguelha, de lágrimas nos olhos, e disse-me que por baixo das calças, da pele, dos músculos, via o osso da perna partido.
Liguei para a ambulância e pedi urgência ao som dos gritos do Manuel. Esperámos uns 20 minutos e nada. Voltei a ligar e fui informada que a ambulância tinha tido um acidente provocado pela chuva intensa que se fazia sentir. Mandei com o telefone ao chão, ficou mais partido que o osso do Manuel.
Peguei no Manuel em braços, sentei-o no carro e conduzi sob chuva e gritos até ao hospital. Ficha de inscrição, triagem, médico, raio-x, TAC e afinal nenhum osso partido. O que o Manuel tinha partido, além dos óculos desgraduados, era o coração. E o que ele chorava, porque não só via demais, mas sentia demais.
Dei-lhe um abraço dos que fazem parar lágrimas e, convidei-o para o que ele mais gostava, um jantar e um sonho. Um hambúrguer cheio de molhos e uma promessa de viagem de balão pela Capadócia.
De um coração partido nasceu um amor, que afinal tinha estado sempre ali, sem que nenhum dos dois, nem o que via demais, o visse. Fomos à Turquia de Lua de Mel e nunca mais o Manuel caiu.