Para cama de molas, Pôr do Sol

Estacionei após dar a volta ao quarteirão, desliguei o carro e respirei fundo. Subi as escadas de dois em dois, mais pela piada do que pela pressa. Abri a porta, descalcei os sapatos e sentei a mala no sofá, que no chão dá avareza. Sentei-me na cama e olhei para a janela.

O Sol nasce todos os dias, sobe devagar e sem pressa, a natureza é acordar devagar, sem despertador, sem obrigação, só porque chega a uma hora que as molas da cama doem mais do que massajam.
Os dias já estão mais pequenos, nota-se mais quando chego a casa, sozinha, e tenho tempo para me sentar. Desejo sempre este momento, depois quando chega tenho o sentimento que a noite chega mais do que à janela. O que vale é que a cama tem molas!

Descalça fui até à cozinha, bebi água pela garrafa, para ver se o estômago acordava, abri o frigorífico e nada feito, tudo congelado. Diziam que quando vivesse sozinha aprenderia a cozinhar, mas não tenho mão, tenho receitas e saber ingredientes de cor não alimenta, e juntá-los numa panela não traz sabor, falta o amor ao bico do fogão (se fosse só ao fogão!).
Voltei a sentar-me olhei para a despensa do outro lado do corredor. Cereais e leite, frio de verão, quente de inverno.

O Sol quando se põe, desce devagar e sem pressa, mas mais depressa do que quando nasce, a queda é sempre mais veloz e as molas fazem mais barulho. Ao contrário da maioria acho que o Pôr do Sol tem mais esperança que o nascer, é mais descomprometido, não tem o peso do “É agora!”.

Taça na mão, voltei à sala e sentei-me ao lado da mala, fiz-lhe uma festa vagarosa, porque é minha. Liguei a televisão e encostei-me. O chão começa a ficar frio, puxei os pés para cima e desliguei o cérebro com um programa de histórias de alguém que conheceu alguém que não era ninguém.
Levantei-me para pôr a taça para lavar amanhã quando o sol nascer de novo, bebi água pelo gargalo, abri o frigorífico e fechei de novo, respirei fundo e voltei para a televisão, agora no colchão de molas. Olhei pela janela e o Sol não estava lá, fechei os estores que a noite é bonita na rua. Fiz-lhe companhia.