Mentiras

Entre soluços e palavras que não conseguia finalizar, Manuel estava afogado em lágrimas que lhe toldavam a capacidade de verbalizar o que sentia. Tinha acabado de ficar de castigo, uma semana sem jogar a sua meia hora diária de World Craft. Não percebia, não lhe conseguiam explicar e ele não conseguia perguntar.

Havia sido avisado que mentir era feio, que não o levava a lado nenhum. Manuel hoje não queria ir a nenhum lado, queria só saber porque é que os pais podiam inventar coisas e ele não.
Cresceu com aplausos a apresentações de histórias criativas sobre dragões e corridas de helicópteros.
A partir do dia em que foram ao Emanha e encontraram a porta fechada com um papel a informar que à terça-feira era o dia de descanso, soube que os pais inventavam estar fechada à quinta-feira, quando lhes pedira um gelado com sabor a pastilha elástica, na semana anterior. Este era só um exemplo das muitas coisas que, ao longo dos seus 10 anos, foi descobrindo.

Achava fascinante a capacidade que os adultos tinham de dizer, com tamanha veracidade, que algo estava fechado, quando queriam chegar mais cedo a casa. Essa capacidade de inventarem em cima do joelho era algo que o Manuel aspirava. Se não comeres a sopa toda o frigorífico come-te a sobremesa, era dito de forma tão certa que Manuel chegou a abrir a porta do frigorífico para ver se lhe descobria dentes.

Ontem, quando chegaram a casa, respondeu aos pais que não tinha TPCs, aquela frase saiu de forma tão natural que correspondia ao mais intimo do seu desejo. Ficou feliz por tal conquista, tão realizado que jantou sem pios nem mios, deitou-se com um abraço de boa noite e adormeceu de sorriso na cara.

Hoje, depois da sua professora ter enviado um recado aos pais por falta da realização da ficha nº 11, adormecia de cara vermelha ferida de lágrimas.