Sarah era a única filha entre sete irmãos, era também as mais nova. Ao contrário do que seria de esperar isso tinha feito dela uma miúda afoita a pontapés nas pedras e abrigas por côdeas de pão. Quando nasceu foi-lhe designado um irmão para tutor, alguém que cuidaria dela e garantiria que fomes alheias não lhe esvaziassem o estômago.
Hussaf era 5 anos mais velho, o mais apegado às cortinas feitas portas da casa deles. A missão foi-lhe dada como mote de sobrevivência e criação de instinto de protecção da menina dos olhos da família.
Diziam pelo acampamento que tinham nascido com as almas trocadas, Hussaf era só sorrisos e lágrimas e Sarah era toda nariz levantado e razão nas veias.
Quando naquela tarde de Sol viram chegar carros que reflectiam a luz, correram todos para ver se era o dia de que os pais tanto falavam, o dia em que podiam regressar a casas de paredes, a mesas de tampos de vidro e janelas floridas. Sarah sempre achou que esse dia chegava assim, num aparato de carros bonitos para os virem buscar e levar de novo para casa.
Ela, Hussaf e os irmãos, juntaram-se aos outros miúdos, que também viviam naqueles terrenos esquecidos, para espreitarem o grande milagre. Hussaf deixou-se resguardado no fim da fileira, quase como se não quisesse ter ido, ficou a ver ao longe aquelas camisas brancas saírem das portas brilhantes. Já Sarah furou até à linha da frente, mão na cintura, a olhar com uma curiosidade inquisidora e postura de prontidão.
Não tinha a certeza se todos sabiam, mas ela estava certa que hoje era o dia, que aqueles carros eram para ela, para eles, que aquelas camisas brancas eram paz, eram regresso, eram as orações dos pais.
Em silêncio rezou com todas as palavras que conhecia, e a rezar adormeceu já de noite, junto ao arame farpado que não conseguia largar. Ao longe adormeceu Hussaf, cansado de chamar por Sarah.
Ali ficaram a dormir, todas as noites do resto das suas vidas.