Estavam a vir da Tailândia, felizes e apaixonados pelas peles bronzeadas que traziam e orgulhosos do perímetro abdominal cheio de noodles, caril e outras especiarias.
Nesse regresso e apesar do conforto da primeira classe da Emirates, Amélia tinha começado com dores nos rins. Já não era só desconforto, era desespero feito milhas. Alertadas as hospedeiras, tinham uma ambulância do INEM à espera na aterragem, para fazerem o transbordo directo do Aeroporto Humberto Delgado para o Hospital de Santa Maria, escolhido tendo em conta a residência na Rua Alberto de Oliveira.
Dos rins alastrou à bexiga, à barriga, às coxas, já nada no corpo de Amélia lhe parecia não doer. As dores transformaram-se em lancinantes gritos que faziam António amaldiçoar todos os Deuses e Budas, de todos os jardins e templos, visitados naqueles últimos dias.
Entraram num corredor de batas, de perguntas que já nenhum conseguia responder. Ela porque já só exasperava, ofegante e rouca, e ele porque estava afogado na confluência de lágrimas e saliva sem fim.
Alguém lhe pôs a mão no peito e ordenou que aguardasse, que fosse buscar uma água, lavar a cara e respirar fundo. Prometeram notícias em breve.
António caiu no chão, não por tropeço ou empurrão, mas porque só pensava que não saberia viver sem a sua sócia maioritária. Por ela tinha feito tudo, ou não tinha feito nada na realidade, e até àquele segundo tudo lhe parecia correcto e fácil. Mas… e se fosse o fim? Não aguentava pensar que tinha deixado de lado o sonho de uma família e o trabalho em Nuremberga. Ela era o motivo bastante. E sem motivo, teriam as oportunidades ficado perdidas nas juras de amor eterno? Seria o eterno tão curto? Faltavam-lhe força nos gémeos, entre pensamentos e questões egoístas. Só queria que aparecesse um estetoscópio pendurado numa bata para lhe dizer que estava tudo bem.
É isso, podia ser só apêndice. Lá respirou, levantou-se, molhou a nuca e sorriu. Bem se lembrava do que lhe doía quando foi de urgência para lhe retirarem esse pedaço que nada faz ao ser humano. E riu, a lembrar que Amélia de um picada de melga deixava escorrer uma lágrima.
De regresso, encontrou o homem que antes lhe tinha posto a mão no peito, mas desta vinha com um sorriso de orelha a orelha, pelo que quando lhe pediu que se sentasse, nenhum receio lhe causou.
– Parabéns, foi Pai de uma menina! Terá de ficar uns dias em observação por falta de acompanhamento pré-natal, mas o índice de apgar…
Deixou de ouvir, de ver…
António e Amélia tinham desistido de ser pais depois da quinta inseminação falhada. Colocaram a adopção de parte porque ambos acreditavam que era darem rosto a uma luta perdida. Fizeram um pacto de morte, mais valia morrerem de velhos, que de tentativas. Dez anos depois tinham percorrido meio mundo com a poupança mensal que correspondia à mensalidade de um qualquer colégio privado de Lisboa.
Quando voltou a si, estava com 40 cms de carne nos braços, não conseguia sentir, olhava e não era dele, não era de Amélia, com toda a certeza. Pai?! Mãe?! A pulseira tinha o nome de Amélia, mas era impossível, impensável!
Entrou uma enfermeira no quarto e prontamente lhe disse haver um engano, explicou timtim por timtim a história de vida de ambos, e entregou-lhe aqueles 2 quilos e meio embrulhados em panos brancos. Riu-se muito, muito alto, e rematou, “Sra. Enfermeira, veja bem, nenhum de nós dorme assim tão tranquilamente, não é nossa!”. Virou costas e sentou-se aos pés da cama de Amélia que dormitava ainda da anestesia geral.
A enfermeira, deixou-se ficar por uns minutos em silêncio, recolhida junto ao cadeirão azul reclinável. E quando percebeu que os ombros de António tinham descaído um pouco, em sinal de libertação, aproximou-se e pediu ajuda. Que segurasse na bebé apenas para que ela conseguisse ver Amélia.
Acedeu, mas não se afastou. Olhava para o seu Amor, e pelo canto do outro olho vislumbrava aquele ser inerte. Quase estrábico renasce-lhe a alma quando Amélia esboça um sorriso na sua direcção e em reposta ao seu “estás bem?” lhe dirige o beicinho amuado que o conquistara 15 anos antes.
Devolve o olhar ao que carregava em braços e, além do estrabismo, ia sofrendo de um ataque cardíaco, ao deparar-se com o mesmo toque de lábios, a mesma linha curva no queixo, era o charme do amuo de Amélia, naquela que lhe disseram ser sua filha. Voltou a apaixonar-se.