Foi gerada no bico do fogão, nove meses de lume brando e pitadas de amor que não foram qb, dormia em formas de forno e foi embalada com água corrente de lavar alfaces, cresceu entre tempos e gramas a decorar listas de ingredientes, ganhou lugar de destaque no quadro de honra das cozinheiras do casario com as suas sopas, era exímia no tempero de tudo o que eram caldos.
As receitas saiam-lhe das entranhas e de tão gravadas que estavam no seu ADN, cada prato servido era como se um pedaço lhe fosse arrancado, num dia servia rins com mostarda e mel, no dia seguinte língua estufada. Chegou a altura em que ensinava aprendizes o segredo das suas perninhas de tomate, da salada de orelha e outras especialidades
reconhecidas, recusava-se, contudo, a ensinar sopas. A única coisa que se sabia era que, de cada vez que tinha essa missão, trancava a porta da cozinha, corria estores e ligava o rádio portátil na maçaneta da porta, era tarefa de dia inteiro.
Não tinha filhos, enteados, nem afilhados, por isso esse seu costume começou a incomodar os senhores do casario que se
afligiam por cada cabelo branco que nascia por baixo da sua toca e por cada estrada que aparecia nas suas rosáceas. A estima pelas sopas, confundia-se com a estima por quem mexia as sopas. Sete vezes para a direita, sete vezes para a esquerda, legumes de sete em sete pedaços, durante as sete horas de sol, sete trincos na porta e sete janelas fechadas e aos
setenta anos uma viagem oferecida para sete dias numa casa sem portas. Chorou os quilómetros de carro que a levaram a sete aldeias de distância, chegou e, na cozinha aberta, queimou as setes sopas que fez.
*inspirado no título de um conto de Mia Couto, em Contos do nascer da Terra.