Anjo

Estava lá muita gente, não percebi nada, andavam de um lado para o outro, havia música a tocar, havia luz, mas não era um dia solarengo, predominava o azul e o branco, mas as nuvens não eram camas assim tão fofas. Tinham-me empurrado e eu tropecei na porta e caí na nuvem da curva.
No primeiro dia ainda a usei sem questionar, mas ao segundo senti que a minha nuvem era trovoada. Não sei se sabem, por lá não há pequenos-almoços, nem caminhadas de brisa na cara, há caras de lufadas de ar fresco e, se nos habituamos muito, ficamos presos nas nuvens e aos anjos que dançam à nossa volta.

Eu fui invadida por saudades e quando as saudades são maiores que o cansaço, os anjos abrem a porta e deixam-nos comer e passear pelo nosso pé, que lá levam-nos a passear em cadeiras e tapetes voadores.
Olhando para trás percebo que haja quem tenha vontade de lá ficar, os sorrisos e as mãos parecem amor, e até são, mas é um amor-missão e o que eu sempre quis foi amor-coração.

Tive a sorte de só ter tropeçado numa porta, porque há pessoas que são empurradas com tamanha fúria que trespassam logo as duas e nunca conhecem aquele hall de entrada, vão diretas ao piso de cima, onde as camas-nuvem são substituídas por camas-estrela. Ouvi dizer que no salão principal é que há silêncio, e de lá é que se vê o mundo de cima, mas há tanto diz que disse que não sei se depois podemos saltar da estrela onde vivemos e dar mais uma voltinha neste carrossel ou se ficamos lá para sempre, ou se vamos ter companhia ou ficar na mais profunda solidão, aliás nem sei se depois da segunda porta não caímos em queda livre até nos transformarmos em alicerces de nada.

Tive medo de lá ficar, foram as saudades e o amor que me trouxeram de volta. Quando nos empurram para que tropecemos de novo na porta fazem-no com a mesma força do primeiro empurrão e portanto damos por nós a aterrar numa cama-cimento. Também aqui o que nos cura são as saudades, não de pequenos-almoços ou passeios, mas as saudades de nós, o que nos salva é o amor-profundo, há quem lhe chame amor-próprio, há quem lhe chame amor-mundo, eu chamo-lhe amor-caminhada.

Eu pedi ao anjo para me empurrar!