Concerto Privado

ilustração de @mouro.ao

Tocava Caetano no rádio, a rua estava vazia e a estrada também. A cidade estava despida de gente, silenciosa para um concerto privado no meu carro.

Lisboa perdida, esta onde me encontro que se abre às luzes dos semáforos e se deixa descobrir com avenidas de sempre e lojas fechadas.

Vi-me do lado de fora do vidro a passar a passadeira de livros nas mãos. Lembro-me mais de chegar do que ir embora, VERDE, agora vejo a cidade mais baixa, com saudades, e oiço o barulho do transito pela manhã e reconheço caras de bons dias, pessoas de lado nenhum, outrora vizinhas e colegas.

Puz repeat no Caetano e continuei, não mais que em terceira para não me perder.

Agora já não viro à esquerda, vou em frente e encontrei-me a descer as escadas no meio de Marvila, a atravessar a rua e a comprar um bolo num tempo sem consciência.

Se existisse um semáforo na rotunda teria parado ali mesmo, por 5 minutos, para me sentir, PISCA, e repeat no Caetano e, já não estava a ir para casa, estava no Saldanha, na Ajuda, no Monsanto, no Colombo, em Campo de Ourique, estava tão lá que não era eu que conduzia. Um ser estranho, pálido, apático e irreconhecível dirigia o carro onde eu ia, há uns 15 minutos, enquanto eu estava lá atrás, a ver-me viver numa maré de vontades demais com sorrisos fáceis e dores de realidade.

Foi assim que cheguei aqui, a viver girassol no meio dos arranha céus.

Mandei-me um beijinho e um sorriso e voltei ao carro, ainda me vi pelo retrovisor e segui, a tomar consciência do caminho.

Estacionei … e tocava Caetano.