Deixaram-me aqui, em cima do napperon herança da avó Emília, para onde já ninguém olha há mais de quinze dias.
Nunca pensei que as palavras que trago ficassem por ler, sou saudade e sou amor.
O Sr. Manel escolheu-me com tanta dificuldade. Passei mais de 10 minutos a mandar-me para o chão, uma eternidade,
até ele perceber que não era trapalhice dele, mas destino meu.
Sirvo para fazer chegar o que alguém não conseguiu falar, seja porque está longe, porque se sente melhor entre um
papel e um lápis, que entre pessoas. O Sr. Manel confessou-me fazer parte do segundo grupo, durante a caminhada no
seu passo em contratempo, até ao correios. Mal eu sabia que faria esse percurso de volta até aqui.
Eu até cheirava a água de rosas, agora se calhar já não cheiro a nada. Nem sou branco pálido, sempre achei que a minha
tonalidade bronzeada fosse apreciada. Sou tão leve e elegante que me podiam ter levado, aberto e lido em qualquer banco de jardim. Não percebo porque se esqueceram de mim aqui, entre as pétalas de túlipas que chegaram no mesmo dia e já estão a desistir de cá ficar. A mim ninguém me lê, a elas, ninguém as cheira.
Já não estão cá o avô Manel e avó Emília, nem a morte os separou.
Amanhã de manhã, quando abrirem as portadas falo com a brisa, para me mandar para chão.
– Mãeeee… Está aqui no tapete uma carta do avô Manel para avó Emília!
– Do avó para a avó?
Querida Emília,
Sessenta anos é tempo de mais, sem dizer que te amo, mas mais um, e sou eu que não aguento.
Sabes que te amei, e que te amo todos os dias da minha vida. Todos os sorrisos foram confissões….
(Diz Que Disse Podcast – texto ligeiramente alterado para adaptação à leitura)