Luz

A Luz era envergonhada e quieta, costumava sonhar com o escuro por mais umas horas. Saía de casa meia apagada e andava pelas travessas evitando as ruas largas de tijolos altos. Vagueava escondida entre raios de sol que se vestiam para brilhar o dia inteiro. À noite, olhava para a lua e sonhava com a magia que a transportava até ao céu escuro de uma lua nova. A Luz era feliz quando quase ninguém dava por ela, para isso vestia-se de cores neutras, evitando as fluorescências dos campos, a prata dos mares.

Trazia calma a quem tem medo do escuro e a quem precisa de descansar das claridades frenéticas da vida. Gostava do seu lugar e de chegar sem se anunciar, aparecia quase sem que os outros dessem conta e vivia com a missão de fazer a lua e o sol descansar, olhava os restantes seres com curiosidade do movimento que causava, como se fosse o toque da escola que os afugentava ora para dentro de caixotes ora para fora deles.

Aprendeu que crescer era morrer e por isso preservava a caixinha de música que a sua avó lhe deu, música essa que durava, tantas vezes, tanto quanto ela, e nessa melodia sabia que a sua existência suave era boa companhia para os melancólicos e para os românticos, via ao longe poemas a aparecerem nas paredes e beijos a desvendarem-se em portas obliquas. Nos dias de beijos e poemas deixava-se ficar um pouco mais na mesa do café da esquina, com o poeta sem nome, não lhe falava, apenas o observava e fazia-lhe companhia nas letras que alguém um dia iria ler, alguém que não ela, talvez o rapaz do beijo lesse aquelas palavras naquela porta, noutro dia, e por isso a Luz continuava a aparecer e a escutar do outro lado do passeio as conversas de despedida.

A Luz sabia o que era o amor, sabia o que era a sombra do tempo e sabia-se amada por quem lhe bastava, afinal não era mulher de multidões, ela ajudava a arrumar a cidade, e dava paz às flores de abril a setembro, beijava-lhes as pétalas duas vezes por dia, e aqui e ali, no bom tempo, beijava também os braços de quem amava e dava-lhe beijinhos à esquimó quando o frio aparecia e tapava peles.

Ouvia-se dizer por aí que a Luz era triste, mas não era, só não gostava de extremos e por isso deixava-se ficar sossegada grande parte do dia e vivia como as flores, uma vida feita de breves momentos, momentos de breve vida. A Luz é a mulher que dá vida às flores, aos sonhadores com insónias, aos inconformados do fim, seja do dia, seja da noite.

Eu sou amiga da Luz, bebemos muitas vezes um café de fim de dia e falamos da vida, falamos baixinho para não incomodar quem se senta por perto, sei que me entende, não pelo o que diz, mas porque no seu tempo limitado me ouve. Obrigada, minha Luz!