A banda tinha feito o segundo encore e chovia que desabava. Eu ainda sentia o corpo a dançar involuntariamente no silêncio, como se a música tivesse passado do palco directamente para as minhas veias. Disse Adeus ao Manuel do café que foi impelido pela multidão a dispersar da praça. Deixei-me ficar abençoada pelo banho de céu naquela noite quente. Era felicidade com cheiro a pessoas e a terra acabada de regar.
Fechei os olhos para que o momento não fugisse, às vezes temos de o prender dentro de nós, para que não se vá.
Pela primeira vez naquela noite senti o arrepio da aragem fria que anuncia o fim da diversão. Afinal somos todos animais comodistas que não toleram temperaturas a baixo da corporal.
Abri os olhos e, ao silêncio, tinha-se juntado a solidão, essa personagem que me assombra desde que me lembro de mim e dos outros. Na escola, no carro, no supermercado, sempre fui dispensável ao sentimento de conjunto. Ficava na minha avó a passar o fim de semana e iam-me buscar um mês depois. Na escola, ainda quando os olhos batem à altura dos cintos que prendem a roupa às pessoas, ficava para assistir às limpezas das salas. Cheguei a ficar sentada na prateleira dos bonecos até à hora de jantar. Quando deram por falta de resposta ao “Se não vens já, hoje não jantas!”.
A chuva já não me assusta, já sei que o céu se repõe, que há pessoas que voltam. Mas voltam quando querem, e o Sol também.
Quem não voltou fui eu.
Fiz da praça casa, das pedras da calçada colchão, das pessoas que voltam salário.
Não foi opção, foi sina, esta vida de não fazer falta a ninguém.