Café Central

Ilustração de @mouro.ao

Se há dias em que fico petrificada, tão fria por dentro que por fora pareço gelo, outros, como hoje, sou toda força.

Tudo começou quando a maldição lhe atingiu a virilidade e nos sentenciou numa vida a dois. O meu Tó nunca mais sorriu, ou ri brutalmente de boca aberta que nunca sabemos o que lhe vai sair por entre os dentes, ou a brutalidade passa-lhe para as extremidades. Ama-me mais quando o odeio.

Sei pelo bater da porta o que aí vem, sinto-o porque o coração passa a bater na cabeça, fico a bater o dente, parece que fui tomar banho numa ribeira do Gerês ou coisa que o valha, chego a vomitar por antecipação. Oiço os passos dele e sei que estes meus tremeliques vão passar à primeira mão fechada.

Cheguei a ligar e deixar o telefone na chamada para o Agente Ferreira, que me tinha pedido provas para fazer alguma coisa. Nesse dia os meus gritos não se ouviam, queria muito que ouvissem as asneiras todas do meu Tó e o levassem e mo devolvessem são.

Quando cá chegaram já ele tinha ido arejar até ao Café Central, levaram-me para o hospital e eu comecei a sentir-me culpada daquela vergonha, de mim ali desnuda no meio de todos aqueles homens bem fardados, quase que me bati. Fugi da entrada das urgências ver se chegava a casa antes do meu Tó.

Riu tanto que lhe via o coração pela boca aberta, foi a primeira vez que me virei. Fiquei virada do avesso.

Hoje saiu de casa sem se despedir, deve faltar pouco mais de um quarto de hora para bater a porta e perguntar pelo jantar, que não vai gostar. Guardei uma faca em cada chão de armário, hoje vou eu ao Café Central.