Vizinhos

Uma criança brinca com um carrinho quando ouve um latido ao fundo da rua, que a faz levantar os joelhos da lama. Aquele gesto repentino despertou a minha curiosidade de janela. De pescoço esticado e em bicos de pés senti-a desejar ter mais uns centímetros.

O latido parecia mais perto e começou a saltar, um latido, um salto, muitos latidos, muitos saltinhos, em direcção ao muro sujo.
No silêncio parava.
Eu ocupava-me a ver aquela dança desritmada. Não via cão nenhum, mas também não me preocupei a procurar. Deixei-me ficar a observar as reacções dela, sempre me entretive com a vida dos outros.
Conhecia a Ema daquele quintal e sabia que gostava de bolas, carrinhos de rodas grandes e cães.
Quem eu já não via há muito tempo era o Lord. Mas pelos vistos ouvia-o agora.
Ema está cada vez mais perto do muro, e eu conseguia ver aquele olhar esperançoso a degladiar-se com o sorriso nervoso. Podia descer, ajudá-la a procurar o Lord, mas iria perder a visão panorâmica do momento.
A Ema começou a coçar os caracóis, a lama dos joelhos e largou desinteressadamente o carrinho. Espreitou pela porta, que nunca passava sem alguém com o dobro do seu tamanho.

Sempre achei que aquela menina não crescia, mas agora percebo que sim, tem as calças por cima dos tornozelos, pelo que já deve ter sido mais pequena. Diria que tem uns 4 anos. Os miúdos com 4 anos já sabem saltar e identificar latidos amigos. Agora que a vejo mais perto, do lado de cá do muro sujo, identifico-lhe traços da mãe. Também não conheço o pai.

Anda à homem, brinca com coisas de meninos, se calhar foi isso que herdou do pai. E por falar em andar, espero que ela
não se afaste muito, se vira a esquina, deixo de a ver. O Lord bem que podia lembrar-se do caminho de regresso, pensava que os cães faziam isso. Não tarda perco o tão esperado encontro. Posso descer as escadas e aproximar-me, mas eu gosto é de não me meter, deixar os momentos desenrolarem-se.

Será que a Ema se perde como o Lord? Agora que penso nisso, não me lembro se com 4 anos sabia voltar a casa.
Os latidos cada vez mais sonoros e intensificam-lhe o passo. Já vai a correr a chamar o Lord.
Porra!
Um carro ao fundo da rua.
Vou-lhe mandar um berro,
vou descer a correr,
vou perder o acontecimento,
vou esconder-me atrás do cortinado,
vou só espreitar o que vai acontecer.

Dei um pulo para trás, soltei um latido, o estrondo foi enorme.

Não resisto,
fico à janela a ver os vizinhos aos berros, estou a tentar perceber se ainda se ouve o Lord, mas as sirenes abafam qualquer outro som. Não vou descer, também nada posso ajudar! Vou só resguardar-me para que não me chateiem com perguntas. Consigo ver pelas frestas dos estores.
Calou-se o latido, a Ema e as sirenes.

Vou descansar, amanhã é outro dia.