Um dia ouvi dizer “nunca voltes onde foste feliz”, sempre achei essa frase batida sem sentido. Devemos então voltar onde o coração se partiu? Dizem os entendidos que é mais fácil guardarmos os momentos maus do que os bons, e agora não podemos revisitar as cores e os cheiros dos sorrisos?!
Decidi aproveitar estes 3 dias de férias, peguei na mochila com umas peças de roupa e no álbum de fotos das férias de 96 e fiz-me à estrada, sem GPS, tinha uma vaga ideia do caminho até Vila Rosa, queria viver a adrenalina de parar o carro e pedir direcções a quem estivesse a passar. Foram as melhores férias da minha vida, as minhas memórias são todas cheias de risos, de olhos brilhantes, de mergulhos na piscina azul, de abraços turcos quentinhos. Estou a precisar de voltar aquele pequeno lugar, onde as casas se vestem com lençóis de linho e a manhã traz pão quente com manteiga derretida.
Decidi fazer-me à Nacional para poder almoçar no Restaurante Boa Viagem, como nos tempos em que fazíamos este caminho os quatro. Colei, no tablier do carro, a fotografia amarelada onde o meu irmão António aparecia a fazer caretas e eu a fazer ar de anjo, mesmo por baixo do cartaz do menu.
Foi a primeira paragem.
Não reconheci simpatias, mas as pessoas pareciam estar lá desde aquele verão de 96, sem nunca terem saído, como se continuassem à espera que aquele dia cheio de correrias se repetisse e, como se tivessem medo de, se trocassem alguma coisa de lugar ou de cor, fosse sentença que aquele dia nunca mais chegaria. Não sei se serão loucos ou pessoas de fé, a linha entre as duas é às vezes demasiado ténue.
Segui.
Parei umas duas vezes pelo caminho, e esses dois momentos aqueceram-me o coração, a pronúncia cravada do Alentejo interior transportou-me imediatamente àqueles dias e trouxe-me à memória as gargalhadas que o meu irmão António dava quando tentava imitar o que ele dizia serem estrangeiros perdidos.
Cheguei à morada que a minha mãe tinha escrito na primeira página do álbum.
A casa não era afinal tão grande como eu me lembrava, mas desvalorizei, e ainda cega de vontade peguei na mochila, no álbum e empurrei a porta de madeira entreaberta.
Fui recebida pela Dª. Maria, a cara dela não me era estranha, a sua voz entrou-me nos ouvidos como uma amiga de longa data com quem já não falamos faz muito tempo. Sorri-lhe, sorriu-me e deixou escapar um “a menina se calhar não devia ter voltado”. Fiquei simultaneamente feliz por achar que me tinha reconhecido e danada por ser mais uma das pessoas que acredita naquela frase feita sem sentido.
Recebi a chave da casinha dos fundos, a mesma onde tínhamos ficado, eu, o meu irmão António e os meus pais. Mas a vontade de sentir tudo aquilo de novo dentro de mim era tão grande que não fui pôr a chave na fechadura e fui directa à piscina azul.
Estou aqui, parada já não sei há quanto tempo, a apertar o álbum junto ao peito com as lágrimas a escorrerem-me. Não consigo dar um passo que seja, nem em frente, nem para trás. Azul é a cadeira junto à piscina, sem mesa, um laranja-acastanhado sustenta um plástico desbotado meio que azulado, sozinha, uma só cadeira, um lugar para uma pessoa só.
Vejo-a de costas, a cadeira, eu olho-a, e ela olha a água podre na piscina, baça, cheia de folhas, flores e bichos mortos a nadarem. A água podre da piscina não se mexe, não há vento, joga ao sério com a cadeira escaldada pelo sol, e eu solitária olho a cadeira que olha a água podre da piscina. As lágrimas, o álbum e a mochila caem-me, e eu acabo por cair na cadeira e a cadeira na água podre da piscina, no fundo os azulejos inscrevem “nunca voltes onde foste feliz”.