Casino

Lançou os dados e pareceu-lhe que tinham ficado em suspenso. O ar que lhe saía do corpo tinha-lhe paralisado a visão, como quando pausamos um filme e a imagem fica estática no écran. O senhor de camisa azul e botões de punho ficou de cabeça baixa a olhar para o relógio, ao lado dele a morena de batom vermelho ficou com o copo preso entre os lábios carnudos, do outro lado o casal de pulloveres estava selado num beijo de esperança. Ele conseguia ver tudo como um quadro à entrada do casino, que regista um dia da sala de jogos. O seu cérebro era a única coisa que mantinha alguma actividade, o que, além de estranho, era altamente contraditório. Até ali jurava que no seu corpo, esse era o órgão que não funcionava. Tinha perdido a conta à quantidade de vezes que tentou pensar numa nova perspetiva, numa solução, há uns meses que travava uma luta para fazer o cérebro abrandar numas situações e acelerar noutras. Chegou à única solução possível, estava avariado, estavam os dois estragados, afinal quando a cabeça não funciona, uma pessoa vai de arrasto, que outra justificação existiria para ele se encontrar ali, num jogo de azar a tentar a sua sorte?!

Sabia que não era lógico, tal como sabia que não era um jogador, nem tão pouco sabia bem a regra das pintas. Se calhar por ser uma coisa desconhecida lhe pareceu bem experimentar. Tudo o que conhecia não lhe fazia sentido, de todas as vezes que apelou à lógica, ao racional, tinha caído num mar de dúvidas, duvidava do que tinha como certo, pelo que ir ao incerto e aleatório lhe pareceu uma boa ideia. Às vezes a lógica vem pela simples oposição das coisas. O que procurava não era dinheiro, não que tivesse muito, mas esse não era o seu maior problema, a questão que o asfixiava era ter perdido a capacidade de delinear a fronteira do certo. Conseguia fazê-lo em situações extremas, sabia que matar estava de um lado e ajudar alguém do outro. Mas essa clareza não existia nas perguntas que fazia a si próprio. Ao tentar perceber em que devia ceder, no que se devia manter firme, acabava enleado na medição do amor pelo outro, por si e do outro.

Naquele preciso momento abriu-se uma frecha na escuridão, já sabia o que o tinha levado a entrar naquela porta giratória guardada por dois robustos homens de preto.

“Sorte ao jogo, azar ao amor”

A decisão que pensava ter sido um impulso irracional tinha, afinal, uma crença por trás, daquelas frases que não nos lembramos, mas que ficam gravadas num esconderijo da nossa massa cinzenta. Quando nada funciona e entramos em estado de sobrevivência a cabeça usa estes redutos para que uma pessoa consiga encontrar uma saída de emergência. Agora fazia sentido. O que tinha ido ali fazer não era jogar, era encontrar a resposta que tinha perdido, sentia-se como se tivesse ido a uma cartomante, estava inexplicavelmente mais calmo, parecia até que os pulmões tinham voltado ao seu tamanho normal e, da mesma forma como tudo tinha ficado inerte, tudo voltou à acção, o casal afastou o beijo, a morena pousou o copo, o homem de camisa azul ergueu a cabeça e os dados caíram.