Nunca mais tinha subido do Rato às Amoreiras a pé. Subi hoje.
Temos muitas vidas dentro da nossa vida. Outros caminhos, prédios com outras cores, ruas com outras inclinações e esta rua é ingreme, faz sentir os gémeos e começar a sentir o coração de quem pouco treina o corpo, mas ainda mais de quem muito exercita a alma e a coragem de começar de novo.
Esta rua une muito mais que o Rato às Amoreiras. Une a faculdade à luta pela independência, pelo amor, pelo acreditar e pela decepção.
A minha vida já passou por aqui e por aqui muito perto, pelo Marquês e por Campo de Ourique. Não me traz saudades, traz certeza que tentei e que continuo a tentar, Que sempre gostei muito das pessoas, que sempre fui um bocado desorientada e, por piada, a subida hoje foi para ir a uma loja chamada GPS.
Na subida, subiram-me imagens, lembro-me bem das Allstars da Lara, do cabelo loiro da Carina, do sorriso da Mariana, do Peugeot cinzento do Nuno, do verniz vermelho da Cláudia, do tapete de arraiolos na parede da sala, da tinta verde e cor de laranja do quarto, do candeeiro de pé da Dª. Antonieta, das mãos gordas a enrolar cigarros do Luís. Este rosa velho dos prédios traz-me a certeza que há razões para os cabelos brancos que pinto.
É bom saber que já não pertenço aqui, pertencendo. Acabo sempre por deixar as memórias más irem embora, deixo-as cair sem querer como quem perde o talão das compras do supermercado, coloca-se dentro da mala, muda-se de mala, de roupa, verifica-se que não se esqueceu das chaves, do telemóvel, da carteira, o talão ninguém sabe bem onde é que ficou e quando se encontra já não serve de nada, pode-se espreitar para ter certeza que não tem nenhum recado nas costas, de um dos dias onde não se tinha onde apontar uma marcação e vai directo para o lixo.
Guardo as pessoas mesmo que elas não me guardem, mas guardo-as a todas, tenho essa incapacidade de as deixar cair.
E não faz mal.
Se calhar é essa incapacidade que faz com que quando caio, não me deixe ficar nas pedras da calçada.
Vou levantar-me do café D. João V e vou descer a rua e deixar este pedaço de cidade, este pedaço de mim, vou para onde meto a chave à porta, vou embrulhar uma bracelete de relógio e viver outra vida, noutra ponta da cidade.