Sempre vestiste preto para esconder os amassos das lutas em que te metias, rixas de rua cheias de pedras da calçada, e buracos de alcatrão.
Quando eras pequeno e franzino sonhavas ser pugilista, ter daqueles de calções largos e brilhantes, luvas sintéticas azuis a combinar com a faixa lateral dos calções. Adormecias a ver-te dar pulinhos de aquecimento e a plateia a urrar de entusiasmo. Treinavas no quarto, pendurando as almofadas com um baraço no candeeiro de tecto, vestias os calções de banho mais foleiros que o pai tinha e, colavas com fita cola castanha, que surripiaras na garagem, umas luvas de cozinha com galos de Barcelos, de bico aberto, incansáveis, a torcerem por ti.
Os anos foram passando, os galos foram ficando desbotados de tanta ovação, as almofadas perderam as penas, os calções do pai passaram a vincar-te a cintura.
Não havia dinheiro para sonhos, o boxe que te esperava era a luta que tinge as mãos de cinzento e, entre sonhos e raivas, carregavas a betoneira de mais areia.
Quem te via calado, não imaginava a velocidade que o teu cérebro trabalhava. Seguias, fazias e ias para o teu canto, sempre por um caminho diferente do dia anterior para que a rotina não ganhasse a luta da miséria. Pelo caminho de regresso arranjavas sempre forma de ganhar uma confrontação de peito de galo, era o teu momento alto da semana. Dizias que era para isso que vivias. Contavas knockouts na parede da cozinha, qual prisioneiro com medo de se perder entre cada nascer do Sol. Tanta vez te disse que essa luta não é a vida, e tu, com o teu sorriso aleijado sempre me respondias, “é a minha vida!”.
Hoje aqui estás, debaixo de ligaduras, talas e tubos, fizeram-te uma espera. Bem te disse que é isso que a vida faz! Não sei se me ouves, mas sei que irás abrir esses teu olhos raiados, por isso aqui virei todos os dias, na esperança que vejas o que escrevi no tecto, ao lado da almofada que pendurei em tua honra “Só é lutador quem sabe lutar consigo mesmo” e não, não quero que te esmurres, mas também não quero que te baixes aos teus golpes, quero só que os encares de olhos abertos, olhos nos olhos, que antecipes o próximo movimento, que te defendas, que recues, que avances, que bloqueies o ataque de gancho, que lutes, que venças e que no fim, eu te possa dar um abraço sem medos do que esconde essa sweatshirt negra.