Boné preto de pala rígida, óculos escuros quadradões e corrente de prata ao peito. Vestia sempre calças de ganga esgarçadas e ténis pretos última moda. A mim que o via a entrar e sair de casa todos os dias, dava-me a impressão que as t-shirts eram todas iguais, mas sei que não eram, uma manhã saímos de casa ao mesmo tempo e vi um tigre furioso a saltar branco da mancha azul escura que ele tinha vestido. Numa outra vez, vi que o tigre não estava lá, portanto, ou tinha fugido, ou a t-shirt era de facto outra.
Nunca entendi aquele silêncio e aquela distância, tentei falar com ele algumas vezes e não conseguia mais que um olhar pelo canto do olho e um encontrão, que acabava num sorriso de satisfação dele.
Às vezes, punha-me a espreitar pela porta, ou janela, entreaberta do quarto, que dava para o quintal. Não entendia o que fazia um rapaz tempos infindos fechado numa divisão com música impercetível aos altos berros.
O meu pai, cada vez que me encontrava a fazer de detetive, dava-me uns carolos que me punham a cabeça a zumbir, mas eu gostava de me esgueirar pelas frestas e folhear livros e cadernos, de abrir capas de CDs e procurar cantos de gavetas. Foi assim que descobri que as músicas que ele ouve têm de facto letra e querem dizer alguma coisa. Tal como, que as palavras que não diz, lhe saem em formas, linhas e figuras em cadernos brancos e lisos.
Até aquela quinta-feira, sempre achei que ele não gostava de mim, apesar de eu também não ter a certeza se gostava dele ou, se o que sentia, era mera curiosidade.
Estávamos a jantar e a minha mãe, sempre desajeitada, entornou a terrina de sopa, o que muito enfureceu o meu pai, que nunca mais morre. A desajeitada que não serve para nada, desfez-se em desculpas e perdões, mas o que nunca mais morre levantou-se e abanou-a para ver se ela também se entornava. Aquilo deixou-me chateada, toda a gente sabe que as pessoas não se entornam! Levantei-me, pus-me em cima do banco de madeira, e gritei que parasse, que morresse, mandei a desajeitada servir o que sobrava e, de repente, levei um estalo a toda a velocidade e entornei-me do banco a baixo. Passei a ser a maior decepção da vida deles. O acidente dos meus pais, que se sentava ao meu lado, reagiu tal tigre a saltar branco e pegou-me ao colo, lavou-me a cara e tirou o boné preto de pala rígida para me dar um abraço.
Mais do que irmãos, somos amigos… Tudo começou com um estalo.