O rapaz e o medo*

O Rapaz
Absorvia o branco das paredes
Os quadros pendurados estavam gravados na pele
Os pés já não olhavam para as escadas

O que era ter o coração em contratempo
Não sabia
Não sabia de paredes amarelas
nem de quadros redondos

Quando o vento soprava
Mais forte
Havia mãos a fecharem janelas
Apareciam tapetes por onde passava
Almofadas por onde se deitava
Roupas passadas na cadeira

Saia de casa com a rota traçada
Às escondidas saltava janelas
Apareciam pássaros
Em vez de cair pairava
E à noite
Morcegos

No silêncio,
As luzes acendiam-se
Na morte
A fada madrinha
O Doutor
O Engenheiro
O pai
A mãe
A Dª. Rosa
A música do piano
Absorvia o branco das paredes
O Rapaz

Não sabia de paredes vermelhas
Nem de molduras vazias
Havia mãos a colarem fotografias
Encherem o copo
O prato
O garfo
A mãe
A Dª. Rosa

Fugiu
Para onde?
Saiu de casa com rota traçada
Com o coração em contratempo
Com as roupas passadas
Descalço

E à noite
Gatos
Luzes
O vento soprava
No silêncio
O Doutor
O Rapaz
Absorvia o branco das paredes
em contratempo
A Dª. Rosa
Partiu
O coração
O Rapaz

Não havia mãos a fecharem janelas
Não havia quadros
Tapetes
Almofadas
Só Janelas
Escadas
O medo.

*inspirado em “O conto do rapaz que partiu para aprender a ter medo.” CONTOS COMPLETOS (IRMÃOS GRIMM)