Um Anjo à minha mesa

Nunca percebi porque é que aqui faz sempre vento, é como se no topo das cinco ruas que desembocam neste largo de calçada branco sujo, existisse uma janela aberta e de lá viessem ventos de norte, que competem em intensidade e bravura. Deve ser por isso que as casas aqui têm duas ou três portas antes de se conseguir chegar para descalçar sapatos. Para fazer
de conta que o turbilhão da rua não existe.
Fecham-se as portas e as janelas e vive-se no ar parado de um lar ameno,
confortante,
aconchegante,
apertado,
asmático,
pesado,
não vá voarem cortinados, almofadas e toalhas de mesa.

Ao jantar, com paredes calafetadas, silenciam-se aragens que nos entraram à chegada, dá-se voz à personagem perfeita de mais um episódio, que se segue com a atenção que devíamos dar à nossa vida, sorrimos e sonhamos com a vida que alguém inventou, que nos cria modelos que não nos satisfazem.

Antes de anteontem, esqueci-me que tinha esta silicone cola juntas e, inconsequente, abri a janela da sala, a que dá para o largo de calçada branco sujo, inclinei-me e deixei a curiosidade espreitar as ruas, respirei fundo e achei que nunca tinha sido tão bom deixar entrar o ar para dentro de mim, o que me atingia não era uma corrente apressada e caótica, nem a morte lenta do ar parado, era força que me puxava os cabelos para dentro de casa com a firmeza de quem segura, para que eu pudesse fechar os olhos sem medo de me desequilibrar.

Tocou o temporizador do forno que aquecia um tabuleiro sem graça, de uma comida tirada ao acaso do congelador, fechei apressada as pesadas vidraças e delas ouvi um grito de dor que fez o sol esconder-se, que apagou todas as luzes e, com o coração a bater-me nas palmas dos pés, fui entre as rachas do chão, em pontas, tirar o jantar do forno, servir a água, ligar a TV, chamar para a mesa.

Sentei-me no lugar de sempre, as mãos não obedeciam ao de sempre, a fome que de dia para dia era menos, tinha sido levada… tanto cuidado com portas e depois fazem janelas que abrem!

A mesa era pequena, não havia espaço para mais ninguém, mal cabia quem lá se sentava, a água tremia, os olhos fechavam-se, os cabelos continuavam firmes afastados da cara, e sentia o sorriso que tinha visto em mim naquela fuga proibida.
Aquele vento que deixei entrar sentou-se na cadeira ao canto da sala, do quarto, da mesa onde mal cabia quem lá se
sentava!