Agosto torrava cabeças, tejadilhos de carros e alcatrão, pelo que a maioria dos lisboetas fugiam da cidade em busca de água de nascentes, cascatas e mar, para arrefecerem neurónios e mornar corações.
Guiomar era das poucas pessoas que preferia ares condicionados entre quatro paredes ou portas. Aproveitava o Miradouro da Graça cheio de línguas que atravessavam fronteiras e via o pôr do sol com um tinto no copo. A fuga dos colegas veraneantes dava-lhe paz no escritório e a busca de peles bronzeadas dos automobilistas fazia da 2ª circular um passeio matinal que lhe agradava ao som dos covers dos Postmodern Jukebox.
O despertador tocou às 7h00 em ponto, pronto para tocar de novo dali a 10 min. Esse intervalo programado dava-lhe a oportunidade de rebolar, espreguiçar-se, ajeitar a cara na almofada mais uma vez, abrir os olhos devagar, respirar fundo e deixar os músculos responderem com calma à manhã.
10 minutos depois, o “don’t worry, be happy” do Bobby McFerrin voltou a tocar em crescendo e Guiomar pegou no telemóvel que dormia no soalho ao lado da cama e confirmou que ainda era Agosto, dia 23, previam 33ºC de máxima e entre um último esticar de braços e um sorriso, levantou-se, deixou entrar a luz matinal ainda fresca e deu início ao seu ritual vertical, que neste mês era todo ele não mais que em segunda. Lavar a cara, torradas e café com leite, sentada a ver as últimas do público on-line. Este começar tranquilo dava-lhe força para mais uma jornada de telefonemas, e-mails, e agendamentos. Vestido azul escuro, fio de prata, rímel, baton, carteira, chaves e o motor do seu C3 a trabalhar. Sabia que este oitavo mês lhe reduzia o caminho para o escritório num terço do tempo, por isso sair de casa pelas 8h00 era suficiente para chegar, beber um café Delta 10 e ligar o computador.
Entre assobios e lálálás a preencherem espaços musicais em que as palavras fogem, Guiomar ia com os pensamentos no jantar à beira Tejo que a esperava naquela noite, tanto que teve de fazer uma travagem brusca no saborear antecipado do seu syrah, tão brusca que por milímetros não embateu no Renault vermelho que travou à sua frente. Baralhada olhou para o rádio do carro – 23 de Agosto, 8:15 – não tinha sonhado. O cérebro não conseguiu entender o que se estava a passar, os cérebros têm essa característica, quando dão algo como dado adquirido, depois têm dificuldade em actualizar a informação e dar-nos a lucidez necessária.
Baixou o som da música, como se os decibéis interferissem com o tempo de espera e, passados 5 minutos, sem sair do sítio desligou-o. Pensou que se começasse a andar agora ainda conseguia chegar a tempo, mas mais 5 min e nem mais um metro. Telefonou à Dª. Cecília que era a recepcionista da empresa, desde sempre, lá avisou do estranho caso do engarrafamento do dia 23 de Agosto.
Quando desligava a chamada começou a ver uma mulher a correr e a gritar desalmada por entre os carros. Não conseguia distinguir as suas feições, nem o que lhe saía da boca, mas de certo que era uma mulher e de certo que corria e gritava. Num impulso, Guiomar abriu a porta do C3 e correu na sua direcção, com o seu vestido azul escuro a tilintar o fio de prata e gritava, também não percebia bem o quê. Correu muito e começou a ver mais nitidamente o cabelo da mulher, comprido cheio de caracóis esticados à força uma manhã de Agosto. Parecia um jogo, Guiomar ia em frente e a cabeleira alisada sem tempo virava à esquerda e contornada o carro verde, Guiomar corrigia a direcção e aqueles fios castanhos cada vez mais enrolados viravam a contornar o carro cinzento da direita e depois esquerda e direita e depois em frente, até que chocaram as duas, quase como se não se estivessem a ver ou ouvir.
Silenciaram-se num abraço abrasador, sem olhar, só um corpo, um tecido azul, um fio de prata, um tecido de cornucópias rosas e pretas, um body e um corpo. Ficaram ali entre um táxi amarelo desmaiado e um TVDE branco eléctrico. Ouviram aplausos como se de uma coreografia ensaiada se tratasse, muitas palmas, até que Guiomar sentiu junto ao seu lado esquerdo um corpo colado ao seu vestido azul escuro, abriu os olhos e lá estava um tecido bege a abraçá-las, deixou-se ficar, ou melhor, deixaram-se ficar e quando deram conta, tinham muitos corpos e tecidos colados a elas e uns aos outros, como um grande novelo.
Ao longe ouviam-se sirenes e buzinas, motores de carros que abriam alas ali junto daquele emaranhado de braços entrelaçados.
Guiomar perdeu a noção do tempo, do horário de trabalho, estava ali segura por dezenas de desconhecidos e sentiu, pela primeira vez na vida, que podia relaxar, que as pernas podiam deixar de fazer força alicerce, que não cairia.
Um polícia tentou perceber quem era o condutor do carro abalroado por um autocarro da carris e ouviu-se um Eu grave, um Eu agudo, um Eu choroso, um Eu desesperado, um Eu eufórico, um Eu tímido, muitos Eus naquele abraço de estrada. Todos eles tinham sido abalroados por aquele autocarro amarelo de alguma forma. Guiomar disse Eu baixinho sem parar. Sentia o embate no corpo, na alma, na cabeça, naquele aperto.
Era aquele autocarro todo ele Lisboa,
era aquela estrada toda ela correria,
era aquela gente toda ela sofreguidão,
era aquele embate todo ele escape!