eu sou a viscondessa

"- Ammu, quando se está feliz num sonho, isso conta?"

                                                  Arundhati Roy

Romão

Fez-se anunciar com um porta-fatos negro no cabide do outro lado do sofá. Espreitei pela porta escancarada para um bom dia de boas-vindas e fui recebida pela mochila largada no lugar do computador. Os porta-fatos não mostram alturas, nem mochilas espíritos e idades, nem as idades, pessoas.

Voltei ao meu lugar, liguei o pc, arrumei o almoço desenrascado no frigorífico da ponta e fui dar um olá sorridente às três salas de caras amigas, sei-lhes mais que o nome a chávena do café.

Café!

Telefone.

Computador.

Sentada, a porta olhada dá para uma parede que não deixa anunciar pessoas, uma espécie de recepção de vultos. Uns e-mails depois, aparecem três vultos, eram dois fatos escuros e uma barriga verde inverno que trazia um homem baixo. Por exclusão de fatos, deduzi que o homem baixo e verde era o dono do porta-fatos e da mochila largada na sala despida.

Pouco depois, os dois fatos mantendo a distância de segurança que uma secretária obriga, apresentam-me a barriga verde inverno. As pálpebras descaídas decoravam uns olhos negros carregados, não de tristeza, mas da necessidade de um prefixo ao nome de baptizado, seria doutor, engenheiro ou arquiteto, jurando que não precisava de tais formalismos, mas exigindo-o veladamente a cada ordem ditada. Seria a quem se teria de dirigir todos os améns, acreditava que crescia a cada amém recebido, mas minguava aos olhos das quatro salas e nós minguávamos com ele. O verde inverno era seco, faltava-lhe água e o almoço, o que tinha em fé faltava-lhe em exemplo. Quando vestia o fato parecia uma criança mascarada de polícia com dístico de uma loja do chinês.

Um dia, depois de muitos bons dias sem olá, um dia em que não almoçou, rebentou-lhe a barriga verde e sujou a primavera em cima de mim e do chão. Agora não era um homem baixo de barriga verde, era um homem verde, pequeno e raso aos olhos de todos os que se aproximavam da porta que dava para a parede.

Antes fosse barriga de almoço verde, antes fosse um Homem, antes fosse Romeu… com um não à nascença transformou-se… Romão, baptizado.

Para cama de molas, Pôr do Sol

Estacionei após dar a volta ao quarteirão, desliguei o carro e respirei fundo. Subi as escadas de dois em dois, mais pela piada do que pela pressa. Abri a porta, descalcei os sapatos e sentei a mala no sofá, que no chão dá avareza. Sentei-me na cama e olhei para a janela.

O Sol nasce todos os dias, sobe devagar e sem pressa, a natureza é acordar devagar, sem despertador, sem obrigação, só porque chega a uma hora que as molas da cama doem mais do que massajam.
Os dias já estão mais pequenos, nota-se mais quando chego a casa, sozinha, e tenho tempo para me sentar. Desejo sempre este momento, depois quando chega tenho o sentimento que a noite chega mais do que à janela. O que vale é que a cama tem molas!

Descalça fui até à cozinha, bebi água pela garrafa, para ver se o estômago acordava, abri o frigorífico e nada feito, tudo congelado. Diziam que quando vivesse sozinha aprenderia a cozinhar, mas não tenho mão, tenho receitas e saber ingredientes de cor não alimenta, e juntá-los numa panela não traz sabor, falta o amor ao bico do fogão (se fosse só ao fogão!).
Voltei a sentar-me olhei para a despensa do outro lado do corredor. Cereais e leite, frio de verão, quente de inverno.

O Sol quando se põe, desce devagar e sem pressa, mas mais depressa do que quando nasce, a queda é sempre mais veloz e as molas fazem mais barulho. Ao contrário da maioria acho que o Pôr do Sol tem mais esperança que o nascer, é mais descomprometido, não tem o peso do “É agora!”.

Taça na mão, voltei à sala e sentei-me ao lado da mala, fiz-lhe uma festa vagarosa, porque é minha. Liguei a televisão e encostei-me. O chão começa a ficar frio, puxei os pés para cima e desliguei o cérebro com um programa de histórias de alguém que conheceu alguém que não era ninguém.
Levantei-me para pôr a taça para lavar amanhã quando o sol nascer de novo, bebi água pelo gargalo, abri o frigorífico e fechei de novo, respirei fundo e voltei para a televisão, agora no colchão de molas. Olhei pela janela e o Sol não estava lá, fechei os estores que a noite é bonita na rua. Fiz-lhe companhia.

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