eu sou a viscondessa

"- Ammu, quando se está feliz num sonho, isso conta?"

                                                  Arundhati Roy

Para cama de molas, Pôr do Sol

Estacionei após dar a volta ao quarteirão, desliguei o carro e respirei fundo. Subi as escadas de dois em dois, mais pela piada do que pela pressa. Abri a porta, descalcei os sapatos e sentei a mala no sofá, que no chão dá avareza. Sentei-me na cama e olhei para a janela.

O Sol nasce todos os dias, sobe devagar e sem pressa, a natureza é acordar devagar, sem despertador, sem obrigação, só porque chega a uma hora que as molas da cama doem mais do que massajam.
Os dias já estão mais pequenos, nota-se mais quando chego a casa, sozinha, e tenho tempo para me sentar. Desejo sempre este momento, depois quando chega tenho o sentimento que a noite chega mais do que à janela. O que vale é que a cama tem molas!

Descalça fui até à cozinha, bebi água pela garrafa, para ver se o estômago acordava, abri o frigorífico e nada feito, tudo congelado. Diziam que quando vivesse sozinha aprenderia a cozinhar, mas não tenho mão, tenho receitas e saber ingredientes de cor não alimenta, e juntá-los numa panela não traz sabor, falta o amor ao bico do fogão (se fosse só ao fogão!).
Voltei a sentar-me olhei para a despensa do outro lado do corredor. Cereais e leite, frio de verão, quente de inverno.

O Sol quando se põe, desce devagar e sem pressa, mas mais depressa do que quando nasce, a queda é sempre mais veloz e as molas fazem mais barulho. Ao contrário da maioria acho que o Pôr do Sol tem mais esperança que o nascer, é mais descomprometido, não tem o peso do “É agora!”.

Taça na mão, voltei à sala e sentei-me ao lado da mala, fiz-lhe uma festa vagarosa, porque é minha. Liguei a televisão e encostei-me. O chão começa a ficar frio, puxei os pés para cima e desliguei o cérebro com um programa de histórias de alguém que conheceu alguém que não era ninguém.
Levantei-me para pôr a taça para lavar amanhã quando o sol nascer de novo, bebi água pelo gargalo, abri o frigorífico e fechei de novo, respirei fundo e voltei para a televisão, agora no colchão de molas. Olhei pela janela e o Sol não estava lá, fechei os estores que a noite é bonita na rua. Fiz-lhe companhia.

Por Esquecer

Os sinos da criança no corpo da igreja, tocavam no chão do céu, o Padre Santíssimo sentado no corrido rezava mulheres de primeira fila e no canto redondo os olhos roxos benziam inocentes.

Esfumei-me no silêncio da nave lateral e o fumo subiu branco aos anjos de cabeças de caruncho. Saí ao badalar do meio e colei-me ao xisto pontiagudo. Foi o meu avó que o colou aqui, com o meu pai, o meu tio e o vizinho, todos parentes de paredes. O xisto cola no xisto que cola na história colada de todas as moradas de todas as casas primas. Essas camisolas de lã noveladas de padres de pedra aqueciam mãos que suavam festas oleosas pelos cabelos de Domingo em crianças brancas.

Saí ao badalar do meio e voltei na hora barulhenta de um Sol já alto com todas as cores com que sujei paredes, todos os gritos desafinados dos joelhos e ombros que mostrei, todos os panos que pespontei de moldes despidos, todos e tudo cheios de nada que contei à calçada calcária branca, às ruas cheias de sinos tijolos. Anos e sinos de milhões de histórias esquecidas de vidas camadas.

Voltei!

Onze badaladas, cabeças lavadas, roupas passadas, sentadas, castanhas, oradas. Sentei-me corrido como o Padre encolhido e assim me lembrei-me que do sino sozinho eu nunca me afastei.

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